domingo, 22 de março de 2015

Aquelas duas, três mulheres*


                                                      
                   Ela quase não podia acreditar, mas era verdade. Ali estavam elas, muitas elas, muitas mulheres, e esse gostar de mulheres que não lhe cabia e lhe fazia às vezes explodir também lhe causava repulsas às vezes. O sensor do coração associado ao da cabeça lhe fazia sentir a garganta como se amarrada ou engolindo uma bola de futebol. As pernas não respeitavam seus comandos e os olhos pareciam tão esbugalhados como uma criança assistindo à aterrissagem de uma nave espacial em seu planeta.
                Vinda de uma cidade interiorana ela não poderia imaginar-se tão amante, tão amada e, entretanto tão excluída de relações tão importantes para os seres humanos, embora os estudos universitários a fizessem refletir que, se era mesmo necessário cumprir os rituais da tradição, família e propriedade privada ... Sonhava uma vida livre e sentindo os prazeres não aceitos, e muitas vezes, repelidos pela ordem social. Apesar disso tudo saber não se privava de vivê-los. Chegou a desejar a morte de um homem homofóbico num dia saindo de uma festa e estando feliz com suas companheiras, foram todas vítimas de uma cena de preconceito imperdoável! Mas isso tudo não lhe retirava a vontade de seguir em frente, afora todas essas situações grotescas no convívio social, era somente essa dor da perda, ou talvez de um contato cortado que, algumas vezes a colocava em dissonância com as alegrias vividas nos amores, amizades e aprendizados no convívio social.
                Então, aquela cena, num lugar completamente adverso a colocava diante de seu passado, diante de suas escolhas, diante daquilo pelo qual desejava viver. Encontrar aquelas duas mulheres, tão suas, tão afastadas, mas tão sendo suas de coração, de genética, de realidade a colocava em meio à um turbilhão de cenas que nunca mais esqueceria e para a qual não poderia mais negar e além disso era preciso divulgar!
              Era a cena da libertação, era a cena de certa aceitação, era a vivência real, mas muito representativa de um imaginário que não podia acreditar. Amava muito aquelas mulheres talvez não tanto quanto e, certamente, de modo bem diferente do qual amava as outras todas mulheres com que experimentou a vida; todavia essa experiência do primeiro amor, dos amores carnais sem sexo, do prazeres do leite materno, do gozo da vivência no útero, das falcatruas sociais de pessoas gêmeas lhe passavam todas em apenas um segundo na cabeça, pois não era fácil retomar em público e perdoar socialmente e fraternalmente o preconceito!
             Mas elas estavam ali, eram duas mulheres, uma idêntica a si, embora se constituindo inteiramente diferente permitindo à ambas serem duas e não somente uma, embora a placenta tenha sido dividida, embora as vontades compartilhadas. Estavam ali as duas mulheres da sua vida, pedindo seu olhar, chorando junto com ela. Revivendo esse amor ora abandonado, ora perdido, mas muito ali recuperado, tornando a vida mais possível e o amor sem a propriedade, sem as agressões sociais, possibilitado.




                                                           


* para minha amiga Carina e seus amores




quinta-feira, 12 de março de 2015

Palavra não alivia


eu fico de cara com essa gente
que usa palavra
pra aliviar tensões
inibir os sentidos
calar os gemidos
ou submeter soluções

palavra foi feita pra agredir
somos cruéis
por natureza linguística!

palavra não tem meio-termo
não tem outro jeito
dita ou escrita
resposta pede aqui ou à ermo!

eu fico pensando
pra quê rimar com palavras?
elas não resolvem nada
elas não te escutam
são indiferentes
são escusas

As palavras escolhem um terreno fértil
elas querem te descontrolar
desconfortar
ou achar que te fazem exitoso
pura mentira!
o verbo, esse aí, só te torna ainda mais ambicioso

Palavra boa mesmo
é a escolhida a dedo
mas também aquela dita sem medo
recuperada
tornada pedra
ou dilapidada

palavra tem ou não compromisso
presta muitas vezes algum serviço
mas foi feita mesmo é pra comprometê-lo.